terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Pedra em movimento






Eu costumo falar pro meu sonho: Quieto aí! Quem manda em você sou eu! Porque ele fica brincando comigo, fazendo palhaçadas, passando por baixo da porta, escondendo embaixo da cama, dentro do meu guarda-roupa, no meio dos meus livros e tem hora que quer mesmo é ir embora. Cá, estou entregue. Estou pedra rolada montanha abaixo ou talvez segurada montanha acima - como a pedra de Sísifo, no meu sempre recomeço. Sei lá eu. Sei que quero viver, e enquanto eu morrer assim, quero esta vida.

domingo, 20 de janeiro de 2013





Divido com os leitores do blog, João Cabral de Melo Neto, este presente lindo...


                                    Os Três Mal-Amados
João Cabral de Melo Neto


Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.


As falas do personagem Joaquim foram extraídas da poesia
"Os Três Mal-Amados", constante do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas", Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59.

Saiba mais sobre o poeta e sua obra em "Biografias".

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Atravessia

                                                     

          Parecia um deserto. Era como se não houvesse vegetação, nem mesmo as rasteiras. Não fosse a sensação de ouvir água em movimento, encachoeirada, caindo por perto, sentiria o abandono do mundo. Acordei de um sonho intenso. Apunhalada, cortada e rôta. Os cortes, os furos, tudo me doía. Ali estirada, minhas roupas pingavam cansaço e dor, suor e sangue. O sol no céu me dizia meio-dia. A metade do dia ido, o meio do dia por ir. Olhei ao meu redor como cegueiam os perdidos. Senti a solidão dos deuses agigantados diante dos humanos.  Meu corpo guardava os tremores e os barulhos das últimas explosões, ainda. Olhava tão cegamente procurando e não conseguia encontrar o caminho tomado pelos olhos moles que acompanhavam os meus. Não entendia a separação do corpo que andou dentro de mim como uma sombra interna, ou meu segundo reflexo. Não me queria atenta ao silêncio da voz que nos últimos tempos havia sido minha audição favorita. O aveludado do pêssego ao meu ouvido havia emudecido. Mas os estrondos, aqueles estrondos da realidade, da vida que existe fora da poesia, tinham alcançado meu sonho.
          O real sangra o imaginário desde que o mundo é mundo. O real, ele vem desmanchando tudo, avalancha, derruba, invade, estraga. Quando num sonho, o seu mundo é acordado pela visão daquele violino de ouro da vida, aí não tem jeito.  A violino de ouro é dura arte. Ele não tem porque vir. É mouco, é mudo, não trine, é só valia. Ele não existe senão para retratar que a poesia finda ali, que o canto não prossegue e parou empedernido no brilho do ouro que o suporta. O violino dourado, ele não tem poros abertos como os da poesia. É tapado, é coberto pelo ouro, em cada possibilidade de expressar a lembrança de ser instrumento. O ouro que a tudo banha de luz e apaga. Que a tudo apaga de luz.
          O domínio, o abate do movimento da poesia pelo caos do real fica na memória. Fica porque não só te acorda de vez, e fixa. Além de fixar, ao que se vê, para melhor torturar fica espinhando em todos os lugares do corpo, recorrendo, lembrando que a dor existe para ser sentida.  O barulho infernal que a realidade faz quando nos chama, machuca os flancos de nosso universo como o big bang - o grande parto, machucou o universo dos universos.
          Levantei-me do chão, olhei a minha volta. Em minha letargia, fui divisando trilhas finíssimas, pouco demarcadas, e como prova de que estava me acostumando a rumar, me imaginei tendo de afundá-las com o peso de meu sofrer, carregando minha vida sem poesia, pesada de minhas desistências, circundada da realidade do ouro. Do ganho de minhas perdas.