domingo, 9 de setembro de 2012

Minha casa em meu lugar



 
         Rodei o trinco amarelo de ferrugem e empurrei a porta desconfiada, devagarinho. Pela primeira vez em minha vida entrei circunspecta ali. Pisei pé por pé e percorri a sala vazia. Fui a cada um de seus cantinhos. O vazio dali enchia meus olhos. Pisava na poeira fina e em alguns toquinhos de madeira esparramados pelo chão. Recoloquei nosso sofá amarelo creme, o televisor, a mesinha ao lado do sofá com os livros de meu pai, pus ali até o cinzeiro dele. Sentia o cheiro das guimbas. Via a estante cheinha de livros perto da poltrona.
       Quis mais, Entrei no nosso quarto, meu e de minha irmã. Até o cheirinho da roupa de cama limpíssima eu senti. Veio junto o cheiro do mofo de quando era inverno. Chovia dias e dias sem parar, naquele sudeste goiano. Nosso guarda-roupa de tão grande nos permitia toda bagunça possível. Nosso material de escola, nosso espelho de ver gente pequena. Nossa vida. Nem sempre tão interessante, mas sempre colorida pelos matizes da infância que  nos traz tanta esperança. Corri para o quarto de minha mãe, pela primeira vez ela não responde ao meu pedido de socorro. Que saudade! Sempre à mão o "help" dela; fiquei habituada. A cama grande onde pulávamos e caímos, exaustos. A porta do quarto dos meninos estava encostada. Empurrei. As dobradiças rangiram de velhas. Senti vontade de pegar no colo meu irmão pequeno. Meu irmão maior, o parceiro. Uma espécie de "supereu" meu. Mais ou menos o que Freud diz que dá o "juízo" pra gente. Ele era a cara do juízo. Sempre ponderado. A cama do meu irmão era séria. Até os brinquedos do meu irmão tinham um jeito sério. 
       Fui mais. Entrei na cozinha. Nossa mesa, nosso fogãozinho a gás, nosso fogaozão à lenha. A porta da cozinha de duas folhas. É assim que se diz, duas folhas. Aquelas que o trinco aferrolha as duas faces e fecha no meio do portal, ou melhor ainda; aquela que o trinco abre as duas partes e a gente fica logo de  frente para o pé de pêssego do quintal, pela manhã. E corre para o balanço, e sente o cheirinho dos cítricos do lugar. Então; a porta estava lá, igualzinha. O mesmo ferrolho. Não resisti. Abri o trinco e fechei os olhos para sentir meu quintal. O quintal mais lindo do mundo. O meu. O pé de pêssego, nosso balanço de corda, o trieirozinho que leva ao pé de manga. O pé de goiabas vermelhas. A poça d' água que se formava debaixo dele. A área. O banheiro da área. A cisterna. Tínhamos cisterna. Que nome é esse cis-ter-na? O balde, a carretilha, o murinho. No murinho, o trincado onde o cimento rachou, remendado. Os tanques ali perto da caixa d'água. Redondões, grandões, Como o mundo era grande no meu quintal. Acho que era por isso que eu cantava tanto. 
       Abri os olhos diante de um mundo mais cru. De plantas secas no quintal, da casa vazia, do cheiro de pó e a sensação de sentir uma vala sob os pés. É que a casa da minha infância havia sido destruída. Ela só existe aqui dentro de mim.  
       
         
 

 


3 comentários:

  1. "mundo, mundo, vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo - seria uma rima, não seria uma solução"...

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    1. Você é boa mineira. Eu sou boa goiana. Então:

      "Se a gente cresce com os golpes duros da vida, também podemos crescer com os toques suaves na alma."
      Cora Coralina

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