Lourenço tem cinco anos e meio. Ele
e eu ficamos mais ou menos duas horas juntos. Num primeiro momento ficou meio
arredio, assustado, mas em pouco tempo estava brincando de bola perto de mim,
esperando pela mãe. Não se desligou da
sala onde estava a mãe, ou do que havia ocorrido (?)... Mesmo sem dizer nada, deixava
claro que queria estar com ela. Olhava ao longe na direção da sala. Eu dizia
que a mãe viria logo, e que ela precisava conversar um pouco mais com a tia
Mara, a psicóloga que a estava atendendo. Que conversando, ela se acalmaria. Mara o havia retirado da sala e dito a ele
que a mãe estava nervosa e precisava conversar um pouco mais. Foi então que ele me disse, assim a seco:
_ Minha mãe gritou pra Alice bem alto
assim: Pega a faca prá mim, que eu vou matar “ele”, e ela estava “era” brava.
_ “Ele” quem?
_O namorado da Rita, minha outra irmã.
_ Por
que isso?
_ Sabia que “ele”
bateu o carro? Minha irmã estava com ele. Estragou tudo. Acabou com o carro.
_ Humm...Machucou?
Calou-se. Estávamos num lugar bonito,
gramado. Ao lado um jardim enorme, com um pequeno parque e alguns coloridos
brinquedos infantis. Ele ficou jogando bola, meio sem querer. Propus uma
brincadeira: Brincar de objetivo. Seu objetivo era jogar dez vezes a bola
na cesta de basquete. Fez a primeira, com dificuldade. Acertou uma e fizemos a festa... mais
outras cestas e outras comemorações. Estava esquecido, entretido ali com a brincadeira. Do nada, parou. Desanimou-se.
Perguntei se queria brincar de outra coisa e propus desenhar. Ele não desenha
ainda. Ficou rabiscando e não saiu nada que ele queria. Pedi para desenhar a
mãe enquanto esperava por ela. Ele
disse que iria fazer duas mães e dois pais.
_ Por que dois?
_ Porque é bom, ué. Muitos.
Não conseguiu desenhar nada e desistiu.
Quis que eu desenhasse para ele, a família. Falou deles. O pai usa calça jeans, mas não gosta dele (Lourenço).
Quis saber por que ele pensava assim. Ele disse que o Renato falou. E que o Renato, era um amigo do pai dele. Ao que eu ponderei:
_ Ele brincou com você.
Amigos dos pais da gente falam coisas tolas, às vezes. Ele devia estar brincando.
Ele disse que não, que esse amigo
do pai não mente, nem brinca; que fala sério. Que o pai não gosta dele mesmo.
_E seu pai? O que diz
disso?
_ Nada.
Ele não é amigo do meu pai. É da minha mãe que ele é amigo.
Pediu-me:
_Desenha meu pai e minha mãe... Minha mãe de
saia, de colares e brincos, meu pai de calça jeans e cinto. Minhas irmãs todas
de saia e de salto alto. A Carmem, a Alice e a Rita. ”Tudo de saia”. Eu e meu
pai de “calça de sair”.
Desenhei o pai, como ele falou. A
mãe; ele pediu para desenhar a barriga maior, que ela tinha um bebê na barriga.
A mãe perto do pai, do lado. Depois a irmã maior... a escadinha. Ele falou. A
outra, depois a outra e finalmente ele, com a calça de sair. Ele estava
completamente envolvido. Disse que o desenho estava lindo e que iria levar com
ele. Pra ficar lá, bem guardadinho.
O tempo foi passando e ele queria ir
até a sala, onde estava a mãe. Chegou uma mulher perto de nós dois, para pegar a
filha que estava ao nosso lado. Eu quis saber se a terapia de grupo havia terminado,
e ela disse que sim. Ele ouviu e saiu em disparada, chorando e gritando a mãe. Eu saí
atrás e pedi calma. Ele só se acalmou
quando viu a mãe, na sala.
Fomos para uma saleta ao lado e ele
olhava os desenhos... um cavalo que tinha pedido, e a família. Olhava para mim
todo o tempo. Nos olhos. Falou que não está na creche, que havia saído, mas que
vai entrar de novo. Quer aprender a desenhar. Nem eu nem ele percebemos que a mãe
havia chegado, por trás. Ela disse calmamente:
_ Vamos Lourenço.
Ele ficou olhando os desenhos,
pensativo. Fingindo não ouvir. Calado.
_ Vamos...preciso ir.
Ele ali caladinho e a mãe parada, insistiu:
_ Agradeça a tia e vamos. Dá um beijo
nela.
Ele olhou em meu rosto. Veio para mim, mas
parou no meio do caminho... Abriu os braços e me abraçou muito forte. Com força. Uma força exagerada. Fora da capacidade de seus bracinhos finos de
cinco anos desnutridos. Ficou quietinho,
só dando o abraço. Muito tempo. Parecia
que ele nem queria mais ir embora. Abandonou-se no abraço. Fiquei esperando ele
se distanciar de mim, mas ele ficava ali, agarradinho. Esperei até ele
terminar o abraço dele...Da mãe, para a mãe, ou na mãe dele... supus.
Ele saiu. Fui saber a história de
Lourenço. A mãe teve depressão pós-parto quando ele nasceu, tentou suicídio
três vezes e tentou afogá-lo num rio, há poucos meses atrás. A família que ele
fala, não existe. Não tem pai, nem irmãs. A família organizada como no desenho,
é só uma gravura que traz em sua memória. É seu sonho. Sua mãe estava sendo
atendida em um consultório psicológico da rede pública, em razão de uma neurose
e havia acabado de ter um surto, uma crise com muito sofrimento que ele havia
presenciado.