sábado, 27 de outubro de 2012

Que me valham os vaga-lumes



         “Luz, quero luz!", palavras de Goethe, em suas últimas horas. Eu as rememoro. Estou agoniada aqui dentro, estou toda emaranhada nesses galhos das árvores, arranhada pelas folhas ásperas. Ninguém nunca esteve aqui antes, penso. As árvores são muito juntas, e assim coladas umas às outras, não há espaços para passagem, há lugares onde só consigo passar retirando com as mãos as folhas dos meus olhos, para não serem machucados. Estou arrepiada de susto e tenho o suor da temeridade. O escuro é absoluto. Um ou outro pirilampo faz risco no longe de mim. Medo não, pavor. Embrenho-me entre plantas desconhecidas, ramos, árvores altas, molhadas e cascudas. Há espinhos. Tropeço em raízes enormes, deslizantes da umidade, e sinto frio. Não caio porque galhos amparam-me e ao mesmo tempo, rabiscam meu rosto de cortes. Um corte na maçã rosto dói, e me parece mais profundo. Dos meus braços, faço verdadeiras foices. Quebro o que posso a minha frente, mesmo dificultada pela moleza dos talos, quando molhados.

          Meus pés arrastam folhas grandes, pequenas, e toda espécie de restos do meu caminhar. Ouço acolá o barulho de uma água que cai em cachoeira. Não sigo nada. Queria me quedar quicando em cachoeiras, na plasticidade que a água dá aos corpos mortos. Não morri, mas estou no inferno, queimo-me nesse gelo florestal. Abro meus olhos no meu escuro, como se não os tivesse. Rasgo minhas mãos tão amadas por mim, e que me deram sempre as palavras certas, nessa selvageria dessa mata úmida, agora desvirginada.  Sofro tudo, sofro toda. Minha condição de impotência, minha pequenez diante de um ninho imenso de árvores, minha nudez nesse fracasso, meus cortes do rosto e dos braços, meus pés delicados doridos, meu corpo frágil quebrado, minhas pernas esmorecidas. Enrosco-me em cipós que me prendem. Mas sigo, não paro. Vou. O cheiro é doce, há o frescor do orvalho misturado ao cheiro do verdor das folhas, dos caules. Posso identificar às vezes o cheiro do eucalipto e do alecrim do campo, que alivia o estar aqui, ele vem como um acalento a esse dissabor. Há um contraste com essa severidade da mata e a delicadeza desses cheiros, serão propositais? Ando que ando e não chego, mas espero o lugar. Mesmo em frangalhos, mantenho o otimismo histérico de ver o lado bom do sofrer. Acredito numa cachoeira que ouço. Numa nuvem de pirilampos que há de surgir. A floresta é movimento, é ação todo tempo. É luta por sobrevivência. Bichos são devorados. São insetos pequenos e grandes que voam, são pássaros que se assustam nos ninhos e vem para cima dos visitantes, são folhas e frutos pequenos e grandes que caem das árvores todo o tempo, são árvores que caem de velhas, são bichos que rastejam e fazem barulhos, são monstros que surgem do interno, são árvores que nos abraçam à força. É toda espécie de treva. Que me valham os vaga-lumes! Que me acudam organismos que possam bioluminescer, e aclarar isto aqui. E vou tracejando um rumo sem tê-lo. É aqui nessa floresta meu encontro. É nesse breu, nesse enlamaçado breu, onde surgirei na leveza da borboleta. É enfurnada nessa minha floresta escura, neste malquisto lugar onde sempre temi encontrar-me. Agora percebo, não são os vagalumes a incidir luz em mim. São minhas luzes a incidir sobre meus dilemas, meus conflitos. Só aqui pude ver-me verme imundo e quero deixar de vez essa larva gigantesca e pesada. Um lugar onde deixo meus bichos peçonhentos que neste momento purgam a mim, meus monstros que me corroíam viva. Quero prendê-los todos no para sempre...amarrados nessa floresta negra onde agora estou. Vim deixá-los. Vim joio separar-me trigo.

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