sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O alimento: Sofrer


     



        Lourenço tem cinco anos e meio. Ele e eu ficamos mais ou menos duas horas juntos. Num primeiro momento ficou meio arredio, assustado, mas em pouco tempo estava brincando de bola perto de mim, esperando pela mãe.  Não se desligou da sala onde estava a mãe, ou do que havia ocorrido (?)... Mesmo sem dizer nada, deixava claro que queria estar com ela. Olhava ao longe na direção da sala. Eu dizia que a mãe viria logo, e que ela precisava conversar um pouco mais com a tia Mara, a psicóloga que a estava atendendo. Que conversando, ela se acalmaria.  Mara o havia retirado da sala e dito a ele que a mãe estava nervosa e precisava conversar um pouco mais. Foi então que ele me disse, assim a seco:
      _ Minha mãe gritou pra Alice bem alto assim: Pega a faca prá mim, que eu vou matar “ele”, e ela estava “era” brava.
      _ “Ele” quem?
      _O namorado da Rita, minha outra irmã.
      _ Por que isso?
      _ Sabia que “ele” bateu o carro? Minha irmã estava com ele. Estragou tudo. Acabou com o carro.
      _ Humm...Machucou?

       Calou-se. Estávamos num lugar bonito, gramado. Ao lado um jardim enorme, com um pequeno parque e alguns coloridos brinquedos infantis. Ele ficou jogando bola, meio sem querer. Propus uma brincadeira: Brincar de objetivo. Seu objetivo era jogar dez vezes a bola na cesta de basquete. Fez a primeira, com dificuldade. Acertou uma e fizemos a festa... mais outras cestas e outras comemorações. Estava esquecido, entretido ali com a brincadeira. Do nada, parou. Desanimou-se. Perguntei se queria brincar de outra coisa e propus desenhar. Ele não desenha ainda. Ficou rabiscando e não saiu nada que ele queria. Pedi para desenhar a mãe enquanto esperava por ela.  Ele disse que iria fazer duas mães e dois pais.
        _ Por que dois?
        _ Porque é bom, ué. Muitos.

       Não conseguiu desenhar nada e desistiu. Quis que eu desenhasse para ele, a família. Falou deles. O pai usa calça jeans, mas não gosta dele (Lourenço). Quis saber por que ele pensava assim. Ele disse que o Renato falou. E que o Renato, era um amigo do pai dele. Ao que eu ponderei:
        _ Ele brincou com você. Amigos dos pais da gente falam coisas tolas, às vezes.  Ele devia estar brincando.
      Ele disse que não, que esse amigo do pai não mente, nem brinca; que fala sério. Que o pai não gosta dele mesmo.  
      _E seu pai? O que diz disso?
     _ Nada. Ele não é amigo do meu pai. É da minha mãe que ele é amigo.

Pediu-me: 
      _Desenha meu pai e minha mãe... Minha mãe de saia, de colares e brincos, meu pai de calça jeans e cinto. Minhas irmãs todas de saia e de salto alto. A Carmem, a Alice e a Rita. ”Tudo de saia”. Eu e meu pai de “calça de sair”.
Desenhei o pai, como ele falou. A mãe; ele pediu para desenhar a barriga maior, que ela tinha um bebê na barriga. A mãe perto do pai, do lado. Depois a irmã maior... a escadinha. Ele falou. A outra, depois a outra e finalmente ele, com a calça de sair. Ele estava completamente envolvido. Disse que o desenho estava lindo e que iria levar com ele. Pra ficar lá, bem guardadinho.
        O tempo foi passando e ele queria ir até a sala, onde estava a mãe. Chegou uma mulher perto de nós dois, para pegar a filha que estava ao nosso lado. Eu quis saber se a terapia de grupo havia terminado, e ela disse que sim. Ele ouviu e saiu em disparada, chorando e gritando a mãe. Eu saí atrás e pedi calma. Ele só se acalmou quando viu a mãe, na sala.
       Fomos para uma saleta ao lado e ele olhava os desenhos... um cavalo que tinha pedido, e a família. Olhava para mim todo o tempo. Nos olhos. Falou que não está na creche, que havia saído, mas que vai entrar de novo. Quer aprender a desenhar. Nem eu nem ele percebemos que a mãe havia chegado, por trás. Ela disse calmamente:
      _ Vamos Lourenço.
      Ele ficou olhando os desenhos, pensativo.  Fingindo não ouvir. Calado.
       _ Vamos...preciso ir.
      Ele ali caladinho e a mãe parada, insistiu:
       _ Agradeça a tia e vamos. Dá um beijo nela.
      
       Ele olhou em meu rosto. Veio para mim, mas parou no meio do caminho... Abriu os braços e me abraçou muito forte. Com força. Uma força exagerada. Fora da capacidade de seus bracinhos finos de cinco anos desnutridos.  Ficou quietinho, só dando o abraço. Muito tempo. Parecia que ele nem queria mais ir embora. Abandonou-se no abraço. Fiquei esperando ele se distanciar de mim, mas ele ficava ali, agarradinho. Esperei até ele terminar o abraço dele...Da mãe, para a mãe, ou na mãe dele... supus.
      Ele saiu. Fui saber a história de Lourenço. A mãe teve depressão pós-parto quando ele nasceu, tentou suicídio três vezes e tentou afogá-lo num rio, há poucos meses atrás. A família que ele fala, não existe. Não tem pai, nem irmãs. A família organizada como no desenho, é só uma gravura que traz em sua memória. É seu sonho. Sua mãe estava sendo atendida em um consultório psicológico da rede pública, em razão de uma neurose e havia acabado de ter um surto, uma crise com muito sofrimento que ele havia presenciado.

6 comentários:

  1. Respostas
    1. C'est la vie, mon ami...Volte mais vezes, gostei de você aqui! Conhecerei seu blog.

      Excluir
  2. Fica uma vontade enorme de saber os dias seguintes desse menino... qtas histórias existem num único ser?????

    ResponderExcluir
  3. Interessante... Às vezes todos nós nos deparamos com momentos gostariamos de que o sonho saltasse para a vida real.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Murah, há sonhos e pesadelos para experimentarmos nessa vida real nossa...

      Excluir