sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O sonho de uma presença





           O melhor da vida é esta capacidade de achar esperança em tudo. Saber do valimento humano. Saber que um homem pode demonstrar toda sua escuridão, sua sequidão e seu deslustre, mas que há nele, lá atrás, no escondido... uma fração não contaminada que se possa resgatar, como no caso.

            Ele não teve pai nem mãe. Quer dizer, ter até teve, mas não os conheceu. A mãe era uma mulher que vivia na esquiva do compromisso, fugia sempre que se via envolvida emocionalmente com os homens. Não os queria entender, não os queria por perto. Morreu no parto de seu único filho. Fugiu que fugiu e ainda assim trouxe um deles ao mundo. Fugiu dele também, que acabou criado por uma amiga. Desde pequeno o sujeito teve a sanha por companheira.  Não se dava com outros garotos. Introverso, praticava toda forma de crueldade com animais. Era do avesso. Uma espécie de mar revolto, nada o detinha. Dentro de si habitavam todos os turbilhões ameaçadores e dragões usavam sua boca para emitir labaredas; razão pela qual foi expulso de casa ainda criança. A rua não desampara, nem quer saber o que tem na cabeça nem o que sai da boca do sujeito. Ela quer para si as sobras, os restos dos carros, dos copos, dos alimentos e das gentes. A rua quer os restos com os quais alimenta sua noite escura, fria e miserável. Mas ele próprio não se quer aos pedaços, se quer inteiro. Cuida de si naquele não lugar de cuidados, ora livrando da faca, ora se alimentando de outros bolsos e sempre se completando na droga. Inteligente, conhece rápido, os caminhos estreitos por onde transita inadequado. A vida ali não é para fracos, é um sobrevôo atrás do outro. Aderiu ao tráfico e facilmente prosperou no permitido de sua única escola. Empodeirou-se. Lambuzou-se e abusou de todo tipo de mandos e desmandos supostos no extra da lei.

            Um dia cochilava à tarde em sua varanda, quando ouviu gritos vindos de seus vigilantes. Uma mulher gritava sua necessidade em lhe falar. Ele a recebe e abandona o tráfico no mesmo instante, como tocado por um bastão encantado. Uma só conversa e ele estava ali, cordeiro e escravo como nunca, de uma mulher que se dizia sua mãe, com quem jamais havia se encontrado na vida. O simbiôntico surgido daí foi inexplicável. Ele se prostrou a todas as vontades dela. A violência e a conhecida crueldade demonstrada nos mandos do tráfico dão lugar a uma vida simples e pacata com essa senhora, regada a carinhos e desvelos. Era a calada da fúria de um rinoceronte, o domo de uma fera. A mãe numa doação de inteiro teor, o filho no completo recebimento. A figura materna despertada dos sonhos, dos contos nunca ouvidos ou conhecidos dele. Ela afaga o que não é dela, ele recebe o que não é dele e retribui. E se encharca do mais puro e doce sentimento de pertença e de senhorio. Ele se inebria do bom de mãe, roupas quentinhas, chás, colos, afagos, comidas cheirosas e quitandinhas, abraços calorosos do fogo de casa materna...e vive ali, neste para sempre reticente dele.  Nunca mais foi o mesmo, um sonho o modificou. O sonho o acordou para a esperança e a determinação de um dia em sua vida, ter tudo isso.

                

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

La vie


                         
                         Penso a vida assim: caminho do aberto!

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Meu escorpião taciturno

       

       Um dia dois escorpiões se encontraram.  Apesar de serem de diferentes espécies, eram escorpiões.  A literatura especializada traz cerca de mil e quatrocentos tipos diferentes deles. De cara, os dois se viram e entenderam suas  primeiras desigualdades , mas se sentiram atraídos pelas suas semelhanças e claro, pelas suas diferenças sexuais de  macho e fêmea. Os escorpiões se perceberam muito parecidos e se impressionaram ao se sentirem. Tão marcante é a visão para os escorpiões, que possuem até seis  pares de olhos e não enxergam bem. Há quem diga que eles captam imagens num tom azul-esverdeado e com seus corpos captem luz invisível aos olhos, de jeito a enxergarem com o corpo todo. Foi nessa fixação de olhos meio cegos, de sentirem-se vistos despidos um pelo outro, de se abarcarem tanto, que surgiu dali uma nova cor e uma nova forma de olhar de escorpiões. Uma única, para os dois. As diferenças não existiam mais. Os dois seguiam se confluindo e cada vez mais se avolumando e se condensando, como quando se misturam dois grandes rios.   
        Dentre os mistérios do escorpião, há o que trata de sua fluorescência. Escorpiões brilham quando a luz incide sobre eles. Ali, bastou o olhar de um no outro e se fizeram iluminados. Escorpiões se envaidecem de suas plasticidades, apesar de terem um aspecto rijo, sem maleabilidade e o corpo fragmentado... A olhar assim, cada escorpião parece feito de um mosaico, parece montado aos pouquinhos, o que dá ao escorpião um certo ar de completude. De que não lhes faltam peças. Talvez por isso, os escorpiões se empoderem, como se se bastassem. 
       Os dois escorpiões que se encontraram são como poetas, são "sentidores". Escorpiões não precisam de festa. Eles são a própria festa. Sensíveis, seu acasalamento é doce e requintado.  Apesar de emanarem sexualidade, se pode ver a infinita paciência em sua conquista marcada pelo ritual da dança chamada "Promenade a deux"  (passeio a dois), onde não têm pressa. Algumas dessas danças duram de quinze a vinte minutos, como há também espécies que ficam dançando até por dez horas seguidas, como é o caso destes dois escorpiões aqui. Que dançaram e dançaram... danças singulares e inesquecíveis. Nesta espécie de  escorpião, o macho não possui um orgão transmissor de esperma, ele então delicadamente limpa o chão, num cuidado com a parceira, depositando ali o espermatóforo, a estrutura que contém seus espermatozóides, para que ela sensualmente na dança, arrastada por ele, passe o ventre e seu orgão receptor no espermatóforo, para receber a doação de parte do que é o seu parceiro. Assim seguiam dançando a vida.
        Tudo lindo, tudo fluindo. Mas a essência do escorpião é inegável, o que o deixa mais misterioso e intrigante. A sua peçonha o espanta da felicidade. Aquilo que brilhava tanto nos olhos dela, aquilo que ele via fogueando em sua fêmea, a felicidade dela estampada, lembrou o fogo que o irrita, que o fadiga.  A luz que ele sente forte e enxerga com profundidade o frustra e amedronta, clareia-o imensamente e foge ao seu poderoso controle. Ele se vê encurralado, acuado, suprido do amor do fogo emanado dela, de seu olhar, daquele calor aterrorizante a ele... e ele se vai. Ele morre ensimesmado. Ela o deixa ir.