Ele
não teve pai nem mãe. Quer dizer, ter até teve, mas não os conheceu. A mãe era
uma mulher que vivia na esquiva do compromisso, fugia sempre que se via
envolvida emocionalmente com os homens. Não os queria entender, não os queria
por perto. Morreu no parto de seu único filho. Fugiu que fugiu e ainda assim
trouxe um deles ao mundo. Fugiu dele também, que acabou criado por uma amiga.
Desde pequeno o sujeito teve a sanha por companheira. Não se dava com outros garotos. Introverso, praticava
toda forma de crueldade com animais. Era do avesso. Uma espécie de mar revolto,
nada o detinha. Dentro de si habitavam todos os turbilhões ameaçadores e dragões
usavam sua boca para emitir labaredas; razão pela qual foi expulso de casa ainda
criança. A rua não desampara, nem quer saber o que tem na cabeça nem o que sai
da boca do sujeito. Ela quer para si as sobras, os restos dos carros, dos copos,
dos alimentos e das gentes. A rua quer os restos com os quais alimenta sua
noite escura, fria e miserável. Mas ele próprio não se quer aos pedaços, se
quer inteiro. Cuida de si naquele não lugar de cuidados, ora livrando da faca, ora
se alimentando de outros bolsos e sempre se completando na droga. Inteligente,
conhece rápido, os caminhos estreitos por onde transita inadequado. A vida ali
não é para fracos, é um sobrevôo atrás do outro. Aderiu ao tráfico e
facilmente prosperou no permitido de sua única escola. Empodeirou-se. Lambuzou-se
e abusou de todo tipo de mandos e desmandos supostos no extra da lei.
Um dia cochilava à tarde em sua
varanda, quando ouviu gritos vindos de seus vigilantes. Uma mulher gritava sua
necessidade em lhe falar. Ele a recebe e abandona o tráfico no mesmo instante, como
tocado por um bastão encantado. Uma só conversa e ele estava ali, cordeiro e
escravo como nunca, de uma mulher que se dizia sua mãe, com quem jamais havia se encontrado
na vida. O simbiôntico surgido daí foi inexplicável. Ele se prostrou a todas as
vontades dela. A violência e a conhecida crueldade demonstrada nos mandos do
tráfico dão lugar a uma vida simples e pacata com essa senhora, regada a
carinhos e desvelos. Era a calada da fúria de um rinoceronte, o domo de uma
fera. A mãe numa doação de inteiro teor, o filho no completo recebimento. A
figura materna despertada dos sonhos, dos contos nunca ouvidos ou conhecidos
dele. Ela afaga o que não é dela, ele recebe o que não é dele e retribui. E se
encharca do mais puro e doce sentimento de pertença e de senhorio. Ele se
inebria do bom de mãe, roupas quentinhas, chás, colos, afagos, comidas
cheirosas e quitandinhas, abraços calorosos do fogo de casa materna...e vive ali, neste para sempre reticente dele. Nunca mais foi o mesmo, um sonho o modificou. O sonho o acordou para a esperança e a determinação de um dia em sua vida, ter tudo isso.