quinta-feira, 27 de março de 2014

Amoralês


                                                                                  (Ilust.Valéria do Campo)
 
            Criei um idioma para nós dois. Nele, os verbos não são de ação, são de estado. De ligação. Nesta língua restrita a nós, as palavras são leves como plumas, se assentam onde querem, como querem e rimam entre si sem pedir nossa ajuda. Tudo é sonoro e harmônico, com musicalidade, ritmo e métrica. Ali, todos os adjetivos designam qualidades positivas e o advérbio mais presente é o de intensidade. Um advérbio de dúvida só aparece para aforquilhar o que pode ser perfeito e o que pode dar certo. A única preposição é a essencial: “entre”. E liga nós dois elementos de uma oração (divina), nos subordinando sempre um ao outro. Ora somos termos regentes, ora somos regidos.
         Nesta minha linguagem também existe a comunicação não verbal onde os pensamentos se encontram e se cumprimentam com abraços. Onde nossas impressões acerca das coisas deste mundo se esbarram e se beijam todo tempo, nos traduzindo. Em minha língua há dois pronomes: nós. Nosso substantivo é abstrato, impalpável como tudo que não se perde no mundo. O artigo é indefinido, o numeral é multiplicativo e a conjunção é aditiva, vem para somar. As interjeições? Ah, as interjeições! Não há amor expresso sem elas... Não que eu conheça. As interjeições, limitei às necessárias: de alegria, invocação, saudação, admiração, de aplauso, agradecimento, animação, de chamado, de desculpa, de desejo e claro, de saudade. Oh, saudade!  
 
 
 
 
 

domingo, 23 de março de 2014

terça-feira, 11 de março de 2014

Caminhada de Hesse

              

                   
                Em uma aldeia muito distante, em uma casa bem grande, vivia uma mulher gigante. Ela não se sabia agigantada. Olhava-se no espelho e além de sua beleza, não enxergava mais nada que a pudesse distinguir de outras pessoas do mundo. Perto dali, havia um homem anão. Ele não tinha conhecimento da existência de mulheres gigantes, também não se imaginava pequeno como realmente era. Acontece que mulheres gigantes raramente olham para baixo, e homens anões não veem além da linha do horizonte traçada por seus olhos. Tece daí a conclusão de que nunca se revelariam um ao outro. 
          Os textos judaicos trazem que somos sempre levados para o caminho que desejamos percorrer. Então, a mulher gigante caminhava olhando para o futuro formado a partir dos seus olhos altos, e não via ninguém. O anão passeava por perto e sentia-se sozinho em sua pequenez  ignorada. Foi aí que ele, o anão, fez pra si uma escada bem alta ligando a terra ao céu e subiu. Subiu, subiu. Deslumbrou-se. A cada degrau subido, se imaginava aproximando mais do que queria, sem sequer dar-se conta do que seria que queria. Ia às cegas. A mulher gigante não parava de andar. Sabia que ao avançar, se aproximava mais de seus objetivos. Às vezes,  surpreendia-se com os percalços em sua andança , mas rumava. Olhou adiante e viu uma escada enorme. Identificou-se. Imaginou ser alguém igual a ela, de pernas compridas para dar passos largos, com quem pudesse dividir caminho. Mas iludira-se. Era um homem pequeno, no alto de uma escada feita de gente. Era o anão. Ele usava pessoas como degraus para se complementar. Ela chorou. Chorou um choro gigantesco e entendeu: não era ali que parava.




sábado, 8 de março de 2014

Conto de ninar mulher insone

                   
 
          Ela jogou-se na cama fria e de olhos estatelados, se olhava nos espelhos que a cercavam. De cada um deles surgiam várias mulheres. Todas, ela. Via-se infinita em suas possibilidades. 
         Uma sirene ensurdecedora e insistente enchia sua cabeça zonza. Seu corpo suava, suas mãos tremiam e seu coração era uma espécie de relógio descompassado que batia fora da hora. Um planeta sem órbita. Em uma parede via uns olhos vermelhos que combinavam com seu batom. Em sua cabeça, os pensamentos eram segmentados, destroçados. Nada seguia uma ordem, todo pensamento era incompletude. Cada fio de cabelo parecia um pensamento interrompido em seu comprimento. Tudo nela era indefinido e despedaçado. Sua memória dançava entre os tempos. Não se enxergava no presente, não estava no seu futuro e não se prendia a um passado. Estava solta, atemporal, sem sequência, quebrada e maltratada pelas pontas de espelhos do teto, das paredes, da cabeceira da cama. Seus pés, por causa da dança, doíam como nunca. Sentia todas as inervações de seu corpo e a dor se espalhava, ramificava quente pelos seus membros.
           Perturbada, ela foi-se encolhendo devagarinho, formando com o corpo uma espécie de concha acústica que lembrava a posição fetal. E ali ficou, embrionária, larvária, por muito tempo. Queria dormir, não conseguia. A música alta latejava sem nenhum sentido e sem ritmo dentro dela. Estava ardendo, seu corpo queimava, ela se via incendiar. Via as labaredas que saiam de seu corpo magro, sem músculos. Seus ossos crepitavam no fogo. De medo, começou a se debater na cama. Ela sabia: entrava em erupção. Via seu sangue sair em jatos deixando seu corpo frouxo, murcho. Mas a natureza humana a tudo aquieta e tudo remedeia. Então, surge de um dos cantos espelhados do quarto, um pássaro minúsculo e pousa no antebraço dela; com seu bico agulhado faz um furo em sua carne e começa a assoprar forte, inflando-a. E aí, ela vai se enchendo, ficando cada vez mais leve, até sair flutuando entre as quatro paredes, multiplicada em mil. Ela ali, boiando no ar, no meio do quarto. Suspensa, lentamente ia ao teto, devagarinho descia ao chão, ia de uma parede a outra navegando no ar, dançando nua. E esvoaçante entre seus reflexos, pairou sobre a cabeceira da cama e adormeceu acalmada por seu bamboleio.