Hoje vivi verdades em um sonho. Em uma de minhas janelas apareceu um beija-flor. Veio vindo, assim, meio melindrado e num sobe desce maneiro e contínuo se aproximou de mim, devagarzinho, quase sem querer. Diferente dos beija-flores, coloridos, exibicionistas, brilhantes, que dão piruetas e voam lépidos de um lugar para o outro, bem travessos; o que surgiu em meu sonho, estava feinho, opaco, letárgico. Ele não era um beija-flor tão pequeno, tinha umas penas arrepiadas, úmidas e estava escuro. Escuro por fora, escuro por dentro. Contrário a isso, tinha nele doçura, força, intensidade, delicadeza, altivez, agudeza, e porque não dizer; o atrativo e a nobreza próprios dessas avezinhas. Beija-flores são ariscos e este não era diferente. Ainda assim, ficou ali me rondando. Não ia embora.
No sonho, sugeri uma guarda. Assoviei chamando baixinho como se chama pássaros. E eu sei chama-los. Estendi o braço com o indicador em riste, também como se faz a passarinhos, e ele veio. Pousou em minha mão, como se, programado. Cravou suas unhas em meu dedo indicador. Estranhei. Doía. Mas eu, de curiosidade, o deixei ficar. Admirada daquele passarinho meio desequilibrado agarrando, apertando meu dedo, não o espantei como quis de início. Acariciei sua cabecinha miúda enquanto olhava seu bico de agulha que também imaginei: sabia ferir flores. De quantas histórias teria sido formado...tantas flores já passeadas, tanto sugar, tantas chuvas, tantos medos, tanto desafeto aparente se atrelava a ele. À medida que ia imaginando sua vida, ele se grudava ainda mais e machucava meu dedo, como se adivinhasse meus pensamentos. Ele pesava, incomodava. Mas o prazer de ter um pássaro na mão envaidece. É lindo. Apesar de ter uma energia carregada e vir de realidades tão duras como parecia, e até pelo bichinho tão arisco que se achegou a mim, deixei que ficasse no calor do meu dedo.
Com o passar do tempo e eu de braço dolorido, dedo furado pelas suas unhazinhas afiadas e já com minha cabeça cansada de significa-lo... diria a Psicanálise de um meu "furor interpretativo" e de um outro meu "furor curativo", afligi-me. Eu achava que tinha as melhores perguntas às respostas dele, todo o tempo. Sabia, por exemplo, que minhas mãos fechadas em concha, aquecendo-o, seria melhor que meu dedo sangrando e repassando só aquele calorzinho. Mas ele insistia e continuava trêmulo, me cortando, obsecrado e com frio. Deixei que entrasse em mim, emprestei meu psiquismo. Esvazie-me de mim e dei lugar a ele. Ele precisava dessa "transferência" e se negava a falar. Claro, era um pássaro. Pássaros não falam: cantam, lamentam. E naquela fantasia toda, eu, ali, de frente para mim, comigo no dedo, encantada e amante, lembrei Rubem Alves dizendo que "amar é ter um pássaro pousado no dedo e quem o tem, sabe que ele pode voar a qualquer momento." Ali estavam um pássaro e um voo sempre planejados, os dois; eu pensava. Também, por outro lado, vi frieza em Vinícius de Moraes expulsando o pássaro que apareceu na janela dele: "Para que vieste na minha janela meter o nariz, se foi por um verso não sou mais poeta, ando tão feliz!" Será, Vinícius, que ando infeliz como estava quando começou a ser poeta? Ah, sabe Deus... Não sei mandar embora, em verso, quando me aborrece uma senhora, que dirá um passarinho!
A Ciência diz dos beija-flores uns famigerados, que despendem muita energia e precisam repor esse gasto todo o tempo, por isso buscam doce, flor em flor. Parece que a Ciência os trata como a "molecagem" em pássaro. São de brincadeirinha. Mas no sonho, ali, aqueles olhinhos brilhantes eram reais e afundavam em mim. Já havia lido que beija-flores enxergam as cores como nós humanos, divisam várias tonalidades. Vão além, detectam raios ultravioletas que nós não distinguimos com nossa visão parca. Mas, e...? E eu? Eu, bem, eu...enxergava almas!
Disseram-me ainda que beija-flor poliniza por acaso, é um aproveitador, um oportunista. Quer o doce da vida e não hesita em busca-lo ainda que por vias torpes. De sua meninice, talvez. Eu o desculpava. Ouvi que só poliniza porque os grãos de pólen impregnam em seu bico e em suas penas e ele os deixa cair, quando procura o alimento. Enriquecedora a visita, pensava: "avis rara, avis cara". Eu o absolvia sempre. Ele, ali, no meu dedo, tudo quanto dele me passava eu relevava. O tempo ia lento e eu estava cansada. Havia interpretado demais e aquela espécie de sessão me causava desassossego. Sinalizei afrouxando a mão, ele imóvel me olhando. Ameacei fechar o braço, ele nem se deu conta. Paralisado, paradinho. Ele não batia asas. Amoleci a mão, desistindo de segura-lo. Gelei ao pensar que iria embora. Ele tremeu assustado e soltou-se lentamente de mim, como que não querendo ir. Saiu de mim como quem deixa para trás todo conforto. Ficou em volta, voando por perto, agora mais brilhante e revigorado. Saí às pressas para acudir meu dedo machucado.
Percebo que não está curado esse pássaro. É pássaro desatinado, não quer se ver bem. Mas vive em torno de mim. Estamos juntos sempre que recorro à janela velha do meu sonho. Ele nem sabe, mas necessita-me, flor grande, que o sombreia em suas inexatidões ou o ilumina em suas demandas. A mim, isso vem como ganhos narcísicos. A beleza do comensalismo. Bom para mim, bom para ele. Sou eu este pássaro que me sonha. Somos este passarinho que te sonha único e me sonha dividida. Dois sós. Somos tantos. "Sui generis". Singular... Belo e adocicado, insano e feio. Contraditórios. Plurais... Raros e especialmente vulgares. Par e/ou ímpar. Dúbios. Brilhantes às vezes às avessas. Ensandecidos. Iluminados. Inquietos. Sempre um pássaro.