sábado, 28 de dezembro de 2013

Minha vinda



Enéas Lour

Nem bem
me começam,
já me termino:
desobediente.
Quando me
adulteço
me menino:
"crediente"
Em uma coragem,
mil destinos.
Em uma covardia,
um só rumo.
Asserenada me aprumo,
sem avesso me atravesso.




terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Em um pé de vento


 

           Escrevo ao vento. Que rouba estrofes, que destrói versos e leva embora minhas rimas. Já roubou de mim um sem número de contos, poemas e histórias que bem poderiam viver em livros, não fossem suas levas. Carrega para longe de minhas mãos o peso que quero dar, escrevendo, e não mais o assenta. Arranca os acentos de minhas palavras ressignificando-as como acha certo.
          O vento, ah, o vento! O vento não tem sido bom comigo. Leva minha voz escrita, leva o que demais me pertence, escamoteia o que de mais eu quero. Há pouco falava de amor e o que fez o vento? Ele, ardiloso, se achegou vestido numa brisa leve a acariciar- me o rosto e quando vi tinha desviado minhas palavrinhas mélicas do poema. Insisti, mudei. Falei de uma realidade mais dura e ainda mais descomposta (se é que existe) que a do amor que vivi travestido em palavras doces. Ele, então, veio uivando e babando como um cachorro louco, rasgou letras, trocou regras gramaticais, engoliu meu dicionário. Queria dar notícias dissimuladas, afinal sou jornalista, pensava eu. Mas o vento impediu. Dessa vez veio bento não sei de que lado: desolou todos os pobres de minhas enchentes, derrubou meus empoderados políticos, golpeou minhas economias, acelerou tragédias iminentes. Guerreou comigo. Fez como quis.
         Antes, as retiradas do vento ficassem ali, no campo da poesia, ou até da realidade da palavra vencida, a escrita. Mas não para por aí. O vento quer ainda mais levar de mim. Acredita? Crudelíssimo. Por último, tem tentado afastar meu corpo franzino de quem melhor o tem amado.
 
 
 
 
 

Eu presa de um passarinho



                                     
            Hoje vivi verdades em um sonho. Em uma de minhas janelas apareceu um beija-flor. Veio vindo, assim, meio melindrado e num sobe desce maneiro e contínuo se aproximou de mim, devagarzinho, quase sem querer. Diferente dos beija-flores, coloridos, exibicionistas, brilhantes, que dão piruetas e voam lépidos  de um lugar para o outro, bem travessos; o que surgiu em meu sonho, estava feinho, opaco, letárgico. Ele não era um beija-flor  tão pequeno, tinha umas penas arrepiadas, úmidas e estava escuro. Escuro por fora, escuro por dentro. Contrário a isso, tinha nele doçura, força, intensidade, delicadeza, altivez, agudeza, e porque não dizer; o atrativo e a nobreza próprios dessas avezinhas. Beija-flores são ariscos e este não era diferente. Ainda assim, ficou ali me rondando. Não ia embora.
           No sonho, sugeri uma guarda. Assoviei chamando baixinho como se chama pássaros. E eu sei chama-los. Estendi o braço com o indicador em riste, também como se faz a passarinhos, e ele veio. Pousou em minha mão, como se, programado. Cravou suas unhas em meu dedo indicador. Estranhei. Doía. Mas eu, de curiosidade, o deixei ficar. Admirada daquele passarinho meio desequilibrado agarrando, apertando meu dedo, não o espantei como quis de início. Acariciei sua cabecinha miúda enquanto olhava seu bico de agulha que também imaginei: sabia ferir flores. De quantas histórias teria sido formado...tantas flores já passeadas, tanto sugar, tantas chuvas, tantos medos, tanto desafeto aparente se atrelava  a ele. À medida que ia imaginando sua vida, ele se grudava ainda mais e machucava meu dedo, como se adivinhasse meus pensamentos. Ele pesava, incomodava. Mas o prazer de ter um pássaro na mão envaidece. É lindo. Apesar de ter uma energia carregada e vir de realidades tão duras como parecia, e até pelo bichinho tão arisco que se achegou a mim, deixei que ficasse no calor do meu dedo.
            Com o passar do tempo e eu de braço dolorido, dedo furado pelas suas unhazinhas afiadas e já com minha cabeça cansada de significa-lo... diria a Psicanálise de um meu "furor interpretativo" e de um outro meu "furor curativo", afligi-me. Eu achava que tinha as melhores perguntas às respostas dele, todo o tempo. Sabia, por exemplo, que minhas mãos fechadas em concha, aquecendo-o, seria melhor que meu dedo sangrando e repassando só aquele calorzinho. Mas ele insistia e continuava trêmulo, me cortando, obsecrado e com frio. Deixei que entrasse em mim, emprestei meu psiquismo. Esvazie-me de mim e dei lugar a ele. Ele precisava dessa "transferência" e se negava a falar. Claro, era um pássaro. Pássaros não falam: cantam, lamentam. E naquela fantasia toda, eu, ali, de frente para mim, comigo no dedo, encantada e amante, lembrei Rubem Alves dizendo que "amar é ter um pássaro pousado no dedo e quem o tem, sabe que ele pode voar a qualquer momento." Ali estavam um pássaro e um voo sempre planejados, os dois; eu pensava. Também, por outro lado, vi frieza em Vinícius de Moraes expulsando o pássaro que apareceu na janela dele: "Para que vieste na minha janela meter o nariz, se foi por um verso não sou mais poeta, ando tão feliz!" Será, Vinícius, que ando infeliz como estava quando começou a ser poeta? Ah, sabe Deus... Não sei mandar embora, em verso, quando me aborrece uma senhora, que dirá um passarinho!
           A Ciência diz dos beija-flores uns famigerados, que despendem muita energia e precisam repor esse gasto todo o tempo, por isso buscam doce, flor em flor. Parece que a Ciência os trata como a "molecagem" em pássaro. São de brincadeirinha. Mas no sonho, ali, aqueles olhinhos brilhantes eram reais e afundavam em mim. Já havia lido que beija-flores enxergam as cores como nós humanos, divisam várias tonalidades.  Vão além, detectam raios ultravioletas que nós não distinguimos com nossa visão parca. Mas, e...? E eu? Eu, bem, eu...enxergava almas!
          Disseram-me ainda que beija-flor poliniza por acaso, é um aproveitador, um oportunista. Quer o doce da vida e não hesita em busca-lo ainda que por vias torpes. De sua meninice, talvez. Eu o desculpava. Ouvi que só poliniza porque os grãos de pólen impregnam em seu bico e em suas penas e ele os deixa cair, quando procura o alimento. Enriquecedora a visita, pensava: "avis rara, avis cara". Eu o absolvia sempre. Ele, ali, no meu dedo, tudo quanto dele me passava eu relevava. O tempo ia lento e eu estava cansada. Havia interpretado demais e aquela espécie de sessão me causava desassossego. Sinalizei afrouxando a mão, ele imóvel me olhando. Ameacei fechar o braço, ele nem se deu conta. Paralisado, paradinho. Ele não batia asas. Amoleci a mão, desistindo de segura-lo. Gelei ao pensar que iria embora.  Ele tremeu assustado e soltou-se lentamente de mim, como que não querendo ir. Saiu de mim como quem deixa para trás todo conforto. Ficou em volta, voando por perto, agora mais brilhante e revigorado. Saí às pressas para acudir meu dedo machucado.
            Percebo que  não está curado esse pássaro. É pássaro desatinado, não quer se ver bem. Mas vive em torno de mim. Estamos juntos sempre que recorro à janela velha do meu sonho. Ele nem sabe, mas necessita-me,  flor grande, que o sombreia em suas inexatidões ou o ilumina em suas demandas. A mim, isso vem como ganhos narcísicos. A beleza do comensalismo. Bom para mim, bom para ele. Sou eu este pássaro que me sonha. Somos este passarinho que te sonha único e me sonha dividida. Dois sós. Somos tantos. "Sui generis". Singular... Belo e adocicado, insano e feio. Contraditórios. Plurais... Raros e especialmente vulgares. Par e/ou ímpar. Dúbios. Brilhantes às vezes às avessas. Ensandecidos. Iluminados. Inquietos. Sempre um pássaro.