sábado, 28 de dezembro de 2013

Minha vinda



Enéas Lour

Nem bem
me começam,
já me termino:
desobediente.
Quando me
adulteço
me menino:
"crediente"
Em uma coragem,
mil destinos.
Em uma covardia,
um só rumo.
Asserenada me aprumo,
sem avesso me atravesso.




terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Em um pé de vento


 

           Escrevo ao vento. Que rouba estrofes, que destrói versos e leva embora minhas rimas. Já roubou de mim um sem número de contos, poemas e histórias que bem poderiam viver em livros, não fossem suas levas. Carrega para longe de minhas mãos o peso que quero dar, escrevendo, e não mais o assenta. Arranca os acentos de minhas palavras ressignificando-as como acha certo.
          O vento, ah, o vento! O vento não tem sido bom comigo. Leva minha voz escrita, leva o que demais me pertence, escamoteia o que de mais eu quero. Há pouco falava de amor e o que fez o vento? Ele, ardiloso, se achegou vestido numa brisa leve a acariciar- me o rosto e quando vi tinha desviado minhas palavrinhas mélicas do poema. Insisti, mudei. Falei de uma realidade mais dura e ainda mais descomposta (se é que existe) que a do amor que vivi travestido em palavras doces. Ele, então, veio uivando e babando como um cachorro louco, rasgou letras, trocou regras gramaticais, engoliu meu dicionário. Queria dar notícias dissimuladas, afinal sou jornalista, pensava eu. Mas o vento impediu. Dessa vez veio bento não sei de que lado: desolou todos os pobres de minhas enchentes, derrubou meus empoderados políticos, golpeou minhas economias, acelerou tragédias iminentes. Guerreou comigo. Fez como quis.
         Antes, as retiradas do vento ficassem ali, no campo da poesia, ou até da realidade da palavra vencida, a escrita. Mas não para por aí. O vento quer ainda mais levar de mim. Acredita? Crudelíssimo. Por último, tem tentado afastar meu corpo franzino de quem melhor o tem amado.
 
 
 
 
 

Eu presa de um passarinho



                                     
            Hoje vivi verdades em um sonho. Em uma de minhas janelas apareceu um beija-flor. Veio vindo, assim, meio melindrado e num sobe desce maneiro e contínuo se aproximou de mim, devagarzinho, quase sem querer. Diferente dos beija-flores, coloridos, exibicionistas, brilhantes, que dão piruetas e voam lépidos  de um lugar para o outro, bem travessos; o que surgiu em meu sonho, estava feinho, opaco, letárgico. Ele não era um beija-flor  tão pequeno, tinha umas penas arrepiadas, úmidas e estava escuro. Escuro por fora, escuro por dentro. Contrário a isso, tinha nele doçura, força, intensidade, delicadeza, altivez, agudeza, e porque não dizer; o atrativo e a nobreza próprios dessas avezinhas. Beija-flores são ariscos e este não era diferente. Ainda assim, ficou ali me rondando. Não ia embora.
           No sonho, sugeri uma guarda. Assoviei chamando baixinho como se chama pássaros. E eu sei chama-los. Estendi o braço com o indicador em riste, também como se faz a passarinhos, e ele veio. Pousou em minha mão, como se, programado. Cravou suas unhas em meu dedo indicador. Estranhei. Doía. Mas eu, de curiosidade, o deixei ficar. Admirada daquele passarinho meio desequilibrado agarrando, apertando meu dedo, não o espantei como quis de início. Acariciei sua cabecinha miúda enquanto olhava seu bico de agulha que também imaginei: sabia ferir flores. De quantas histórias teria sido formado...tantas flores já passeadas, tanto sugar, tantas chuvas, tantos medos, tanto desafeto aparente se atrelava  a ele. À medida que ia imaginando sua vida, ele se grudava ainda mais e machucava meu dedo, como se adivinhasse meus pensamentos. Ele pesava, incomodava. Mas o prazer de ter um pássaro na mão envaidece. É lindo. Apesar de ter uma energia carregada e vir de realidades tão duras como parecia, e até pelo bichinho tão arisco que se achegou a mim, deixei que ficasse no calor do meu dedo.
            Com o passar do tempo e eu de braço dolorido, dedo furado pelas suas unhazinhas afiadas e já com minha cabeça cansada de significa-lo... diria a Psicanálise de um meu "furor interpretativo" e de um outro meu "furor curativo", afligi-me. Eu achava que tinha as melhores perguntas às respostas dele, todo o tempo. Sabia, por exemplo, que minhas mãos fechadas em concha, aquecendo-o, seria melhor que meu dedo sangrando e repassando só aquele calorzinho. Mas ele insistia e continuava trêmulo, me cortando, obsecrado e com frio. Deixei que entrasse em mim, emprestei meu psiquismo. Esvazie-me de mim e dei lugar a ele. Ele precisava dessa "transferência" e se negava a falar. Claro, era um pássaro. Pássaros não falam: cantam, lamentam. E naquela fantasia toda, eu, ali, de frente para mim, comigo no dedo, encantada e amante, lembrei Rubem Alves dizendo que "amar é ter um pássaro pousado no dedo e quem o tem, sabe que ele pode voar a qualquer momento." Ali estavam um pássaro e um voo sempre planejados, os dois; eu pensava. Também, por outro lado, vi frieza em Vinícius de Moraes expulsando o pássaro que apareceu na janela dele: "Para que vieste na minha janela meter o nariz, se foi por um verso não sou mais poeta, ando tão feliz!" Será, Vinícius, que ando infeliz como estava quando começou a ser poeta? Ah, sabe Deus... Não sei mandar embora, em verso, quando me aborrece uma senhora, que dirá um passarinho!
           A Ciência diz dos beija-flores uns famigerados, que despendem muita energia e precisam repor esse gasto todo o tempo, por isso buscam doce, flor em flor. Parece que a Ciência os trata como a "molecagem" em pássaro. São de brincadeirinha. Mas no sonho, ali, aqueles olhinhos brilhantes eram reais e afundavam em mim. Já havia lido que beija-flores enxergam as cores como nós humanos, divisam várias tonalidades.  Vão além, detectam raios ultravioletas que nós não distinguimos com nossa visão parca. Mas, e...? E eu? Eu, bem, eu...enxergava almas!
          Disseram-me ainda que beija-flor poliniza por acaso, é um aproveitador, um oportunista. Quer o doce da vida e não hesita em busca-lo ainda que por vias torpes. De sua meninice, talvez. Eu o desculpava. Ouvi que só poliniza porque os grãos de pólen impregnam em seu bico e em suas penas e ele os deixa cair, quando procura o alimento. Enriquecedora a visita, pensava: "avis rara, avis cara". Eu o absolvia sempre. Ele, ali, no meu dedo, tudo quanto dele me passava eu relevava. O tempo ia lento e eu estava cansada. Havia interpretado demais e aquela espécie de sessão me causava desassossego. Sinalizei afrouxando a mão, ele imóvel me olhando. Ameacei fechar o braço, ele nem se deu conta. Paralisado, paradinho. Ele não batia asas. Amoleci a mão, desistindo de segura-lo. Gelei ao pensar que iria embora.  Ele tremeu assustado e soltou-se lentamente de mim, como que não querendo ir. Saiu de mim como quem deixa para trás todo conforto. Ficou em volta, voando por perto, agora mais brilhante e revigorado. Saí às pressas para acudir meu dedo machucado.
            Percebo que  não está curado esse pássaro. É pássaro desatinado, não quer se ver bem. Mas vive em torno de mim. Estamos juntos sempre que recorro à janela velha do meu sonho. Ele nem sabe, mas necessita-me,  flor grande, que o sombreia em suas inexatidões ou o ilumina em suas demandas. A mim, isso vem como ganhos narcísicos. A beleza do comensalismo. Bom para mim, bom para ele. Sou eu este pássaro que me sonha. Somos este passarinho que te sonha único e me sonha dividida. Dois sós. Somos tantos. "Sui generis". Singular... Belo e adocicado, insano e feio. Contraditórios. Plurais... Raros e especialmente vulgares. Par e/ou ímpar. Dúbios. Brilhantes às vezes às avessas. Ensandecidos. Iluminados. Inquietos. Sempre um pássaro.





 

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Dormindo na semente






Num canto como um santo
professo levando aves em bando.
Voam folhas brancas do meu pensamento,
lento transportar reticente...
Ronda-me, aqui, toda vulnerabilidade.
Ah, meu suposto saber que me arrasta
por salões vazios do meu palacete negro.
Estou estática. Entrevada.
Sigo nua fantásticas catedrais afora.
Trago a inércia do desprazer
E despida - sou toda Tânatos.
Permeio teias adentro. Pontuo.
Recalco como quem descansa
profundo em uma semente.
Calo em veias turvas, azuladas.
Caricaturo personas em pesadelo.
Invalido-me, me impossibilito.
Só tua presença me acorda.










quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Todo verbo


    
                       EM CAnto                                                                        entoaDA  







                       enCANtada                                                                encanTOada     




                                                                                                                                                                        

domingo, 10 de novembro de 2013

Pronomes





De quantas somas,
mulher, 
de quantas somos?
Quantas e quais umas 
nos moldaram uma qualquer?
Quais delas 
nos fizeram "a" mulher?
Que acesas, que veladas...?


sábado, 28 de setembro de 2013

Serenando

                    
                          Sereia minha,
                              serei teu _ minha
                           encantada serás. Mas
                          aceita-me do meu jeito...
                        Não me queiras, de capricho,
                          espelhado no teu eixo duro 
                           e nessas águas doces tuas.
                            Vem, nada tu, por mim.
                              Nada pelo meu corpo,
                                 nas minhas veias
                                  abertas para
                                   teu deleite.
                                   Deixo-te
                                    seguir
                                     meu
                                     leito.
                 E enquanto    ouço maravilhado
     teu  canto, que eu       possa ser, para o teu
   espanto, o calmo            veio do teu rio, a travessia
da tua  lua cheia                         de sonhos amarelados.

                
                  


  

sábado, 14 de setembro de 2013

"Affair"





Deus nos proteja de nós
te proteja de mim
Deus nos procure
Pro esteja, te leve,
livra-me de ti
Deus nos cure e dê fim
Deus socorre e só corre
Enfim _ que Deus nos dê
Devolva, envolva, volva
Por estar contigo
Deus vinga, enciúma
Porque está em nós
humilha, recrimina
maltrapilha, maltrata
machuca, deita culpa.
Deus te evita, me desabona
Deus é viga forte
carrega pra longe a leveza
Desnorteia, desencanta
Te descarrega em minhas costas
Diz que te carrega nos braços
Deus não sabe o que diz
engessa teu peito, me enrijece
Deus não tem jeito
Deus mente pra mim,
vilipendia na madrugada
Deus não sabe o que faz,
nem faz nada 
Pois nem se quero,
sequer, Deus sabe.
E eu já nem sei claro,
o que quero de Deus.


quarta-feira, 31 de julho de 2013

Chão nos ares

 
 









Tenho pés desobrigados
Carrego uns passos tortos
prometo uns passos retos

Ah, estes meus pés sem travas,
de quantas asas serão dotados...







quinta-feira, 25 de julho de 2013

Descaminhos

 
 


Pra que saber de tua estrada...
se teus pés para mim estão mudos
e minhas mãos para ti, caladas?






segunda-feira, 1 de julho de 2013

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Vida de passarinho


  


Meu pássaro encantado
tem alma infante
ele sonha gigante.
É pássaro colorido,
de pernas pro ar
faz ninhos quiméricos.
O pássaro que te falo
 briga como um galo,
tem o bico torto.
Voa comigo asas mansas
e o peito é cheio,
abarrotado de melodia:
uma para cada dia.
Mas... e coração de ave?
Tu queres saber como é?
É um cisquinho de nada
e tem asinhas nele.





sábado, 8 de junho de 2013

domingo, 26 de maio de 2013

Sarama "guiada"....

 



Saramago fala mais por mim e de mim, hoje, que eu mesma!

"Se tens um coração de ferro, bom proveito.
O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia."
José Saramago







domingo, 24 de março de 2013

Retrato

 
   
E por falar em reflexos e em retrato, é em Cecília Meireles que me espelho quando me empresto ao poema ou dou de mim, à minha poesia.
 
 
 
 
 
 
 Retrato
"Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?"
 
Cecília Meireles
 
 

terça-feira, 12 de março de 2013

Luz das estrelas



 
         De quem é a luz que pousou em meu corpo? Acordei iluminada. Ouvi quando passos apressados andaram em volta de minha cama. Tive a sensação boa de ver tuas costas largas. Antes, porém, senti um mansinho de mão tocando-me os cabelos suados. Meu corpo foi se inclinando ressabiado e cauteloso para perceber-te completo, mas não te vi. É que não conheço bem quem sorrateiramente ronda meus sonhos e sono, desarranja meus lençóis, procura-me, advinha-me e presumidamente me desacoberta em minha cama, me acha e eu me perco. Acordei acesa. Eu tinha um brilho, um laser atravessando de ponta a ponta meu corpo. Quis saber quem da escuridão de meu corpo apagado, teria pena. Quem a mim quereria ver - se nem eu quis - ver-me luzidia?
         Ah, deixa-me na escuridão a que me proponho. Deixa-me, pessoa. Caminha teu caminho e não ronda meu quarto escuro. Anda mais. Espreita-me de jeito que não me irradie tua luz. De longe, bem longe. Minha solidão é avessa a se ver assim, muito clara. Minha fragilidade é envergonhada. Meu coração é poço enlameado de mágoa. Meu orgulho tão artista, coitado, fugiu correndo assustado. Minha ingratidão ficou desapontada. Eu peço, tira teus olhos luzentes de meu corpo. Tira tuas mãos brilhantes da minha cabeça. Esqueça. Como hás de me apagar agora, se tudo é lume quando te achegas? Toda fogueada, ardo em tua cintilação. Por quem te tomas, que faz em minha floresta escura uma clareira apontando meus erros aos Deuses? Por que vens enquanto durmo te acovardando diante de meu negrume e me entorpeces de clarões... E me confundes a vista, e arranhas o meu espelho com teus raios doridos. 
         Sinto como se todas as estrelas entrassem de uma vez em meu quarto preto, quando surges. Quem quer luz? Quem te disse que dela preciso? O teu claro prescinde meu escuro, ou depende dele? A que vens? Chegas na calada e foges quando dou por mim esplêndida. Não assumes a intenção de teu fulgor, de tua atitude de aclarar. És uma estrela invasora ou uma constelação delas assumindo forma humana ou ainda, és forma humana só ao meu lado. És grande e brilhante porque sou uma tua inversão, um reflexo teu versão mulher. Brilha tu, acolá; estrela imensa. Seja-a de mais longe, por favor. Afasta-te. Ou de mim depende tua evolução para deixar poeira estelar? O meu corpo te evolui, meus sentimentos te avolumam, meu afeto te soma e minha verdade escura te desorienta, te reverte aos deveres de novos começos. Quer minha sombra para que não te torres no rútilo de tuas vaidades. Sim, precisas de meu corpo escuro para dormir tua luz intensa quando a noite te vem espavorir. Sinto; és meu bem maior, mais rico, mais preciso, e me luz, e me incendeias e me incomodas. Como me incomodas!

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Me beija-flor





O beija-flor vive de floreios em sua realidade
Eu vivo de poetar em floradas racionais o que sinto

Tu vives de acordar a conveniência de teu sonho em botão
Deliramos em conjunto
Alucinamos coletivo - o beija-flor, tu e eu

Numa vida enfadonha e fantasiosa
estouramos bolhas de sabão coloridas em nossa fronha

Teço teias vívidas com fios de tuas veias
Enredo-me no azul do teu sangue lento meu domínio

Na papoula, o beija-flor zonzo sonolento

No emaranhado de nossa presença
No fim de meu túnel à luz da tua verdade

O pesadelo da pertença   

Possuo-te, mas não sou tua

És meu, e não me pertences...

Dia virá quando o beija-flor, tu e eu, exaustos
Sem o torpor que a papoula deu

Sem a tendência do acorrentado Prometeu
Viveremos de vida, numa grande bolha colorida

Sem hora dividida, sem tempo definido, sem sombra de ida
Com flores, méis, beijos, anéis e um beija-flor sóbrio

Longe dos véus, longe e num céu que nos ronda e quer





quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Caleidoscópio

 
 
 

          Havia passado a chuva,  a trovoada, o temporal, mas o vento gelado ainda grudava na pele. Seus olhos vermelhos pareciam duas poças grandes d’água em um colinho de açucena. Desequilibravam e balançavam o homem, como a água da chuva faz com o copo dessa flor. Arrisquei uma tosse, não saiu. Olhei para o lado e me vi atrelada ao destino que acabava de se inventar pra mim. Estávamos no carro e tudo lá fora era molhado de tristeza, e eu pensava no quanto tudo ali dentro era seco da alegria que um dia sentimos juntos.

         Olhei o caminho longo que agora se formava da janela. Rumos estranhos, mal traçados. Todos os galhos das árvores lembravam sobras de trilhas que não tinham um começo visível e nem se podia ver seus fins porque as folhas impediam. Incerto futuro, pensei. Recorro sempre às chaves em minhas inseguranças, lembram-me saídas e chegadas. Segurei-as entre meus dedos tensos, com certa frouxidão. Precisava da certeza da ida e o barulho das chaves provocava  isso em mim. Aquele tinguelingue quando elas esbarram umas nas outras, arranham minhas horas. Sempre foi assim, percebo meu tempo nas chaves, pelo balanço delas vejo se ele está vencido ou se começa a ser contado.

         Dizer o que, quando as chaves já me diziam tudo e quando o momento roía-me os calcanhares? O meu ir, gritava dentro e só eu sabia o quanto gritava alto, quase que dava para se ouvir de fora. Olhar o longe era a arma contra ver do canto dos olhos doces, desaguar o tudo represado e ainda dificultar a descida da minha montanha. Ah, a montanha... Uma descida sonhada, bem-vinda, que pensava eu, seria uma disparada como um esqui deslizando na neve, um escorregador sem fim, uma bicicleta sem freios, um mundo sem atalhos, sem curvas. Meu coração moleque de rua iria descruzar os braços, destravar as pernas, pisar macio os pés sujos e correr esvoaçando com o vento os cabelos suados, rumo ao novo caminho. Ele queria experimentar a vida irresponsável de sair na correria, sem alma, sem calma, desarmado, desimpedido, descompassado, desatrelado, despedido, e todos os “des” mais existentes. Ir, ir e ir. Deixar para trás os idos, os tidos, os vividos, os investidos, os lidos e buscar os “rá” que se formariam a partir dali.  Abri os braços e a vida  foi me invandindo, me inflando  e se acomodando em mim. Pus uma venda nos meus olhos de enxergar o passado e abri uma fenda no futuro.  

           

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Volare







         Na loja de brinquedos a meninazinha indignada olha para a mãe e diz: _ Por que tenho que escolher entre esta cor e aquela, entre este ou aquele brinquedo? A mãe responde ainda sem saber por que o diz, sobre as vantagens de se poder escolher. A mãe tenta mostrar a eterna investida das escolhas na vida das pessoas e a inevitável assiduidade do escolher. “Isso é assim a vida toda”, diz a mãe, à filha. Nem explica tanto, mas deixa subentendido que escolher é bom.
        A menina cresce, mas não gosta quando surgem as alternativas. Quer voar para esquecê-las. Torna-se adolescente, se esbarra nas escolhas e enquanto pensa no bom de escolher, não escolhe a contento. Assim nunca se convence da escolha como coisa boa. Adulta escolhe viver como a mãe e vive escolhendo, por achar que escolher é necessário e bom. Segue entre o isto e o aquilo, todo tempo. A profissão, suas parcerias, seus partidos políticos, instrumentos musicais, os amigos, casas, músicas, flores, agulhas, chaves, cursos, maquiagens, livros, estilos e tudo o mais. A vida segue e a deixa cega de escolhas. Ela quer voar para esquecer...
        Acontece que quando se pensa entender a vida, ela nos rasteira. Adulta, a meninazinha entende que realmente, uma grande parte da vida é por ela escolhida. Mas há outra, uma parte mais rígida, imposta pelo social e disposta nas crenças, na cultura,  já embutida nas opções.
      No fim, inimaginável por ela é a quantidade de acontecimentos determinantes em sua vida e independentes de suas escolhas. E eles, sim, voam intocáveis e inatingíveis. Não são ou serão impostos, mas surgem, ou surgirão por encanto numa espécie de magia do caminhar. São diversos e adversos os nomes dados na intenção de se definir essa coisa que acontece e foge de nosso controle. Chamam de acaso, coincidência, providência divina, fatalidade, sorte, azar, dita, desdita, destino, sina, fado, futuro, e por aí vai. Ou, por aí se vai... nessa trilha afofada de folhas, escolhe-se onde pisar sem nunca descobrir o que há embaixo do passo.... Segue-se pelo caminho sem saber o compasso. Toma-se um rumo novo sem entender o motivo... Pode-se escolher o abraço, mas nunca se tem a alternativa de enxergar o coração que mora atrás dele...


terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Pedra em movimento






Eu costumo falar pro meu sonho: Quieto aí! Quem manda em você sou eu! Porque ele fica brincando comigo, fazendo palhaçadas, passando por baixo da porta, escondendo embaixo da cama, dentro do meu guarda-roupa, no meio dos meus livros e tem hora que quer mesmo é ir embora. Cá, estou entregue. Estou pedra rolada montanha abaixo ou talvez segurada montanha acima - como a pedra de Sísifo, no meu sempre recomeço. Sei lá eu. Sei que quero viver, e enquanto eu morrer assim, quero esta vida.

domingo, 20 de janeiro de 2013





Divido com os leitores do blog, João Cabral de Melo Neto, este presente lindo...


                                    Os Três Mal-Amados
João Cabral de Melo Neto


Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.


As falas do personagem Joaquim foram extraídas da poesia
"Os Três Mal-Amados", constante do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas", Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59.

Saiba mais sobre o poeta e sua obra em "Biografias".

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Atravessia

                                                     

          Parecia um deserto. Era como se não houvesse vegetação, nem mesmo as rasteiras. Não fosse a sensação de ouvir água em movimento, encachoeirada, caindo por perto, sentiria o abandono do mundo. Acordei de um sonho intenso. Apunhalada, cortada e rôta. Os cortes, os furos, tudo me doía. Ali estirada, minhas roupas pingavam cansaço e dor, suor e sangue. O sol no céu me dizia meio-dia. A metade do dia ido, o meio do dia por ir. Olhei ao meu redor como cegueiam os perdidos. Senti a solidão dos deuses agigantados diante dos humanos.  Meu corpo guardava os tremores e os barulhos das últimas explosões, ainda. Olhava tão cegamente procurando e não conseguia encontrar o caminho tomado pelos olhos moles que acompanhavam os meus. Não entendia a separação do corpo que andou dentro de mim como uma sombra interna, ou meu segundo reflexo. Não me queria atenta ao silêncio da voz que nos últimos tempos havia sido minha audição favorita. O aveludado do pêssego ao meu ouvido havia emudecido. Mas os estrondos, aqueles estrondos da realidade, da vida que existe fora da poesia, tinham alcançado meu sonho.
          O real sangra o imaginário desde que o mundo é mundo. O real, ele vem desmanchando tudo, avalancha, derruba, invade, estraga. Quando num sonho, o seu mundo é acordado pela visão daquele violino de ouro da vida, aí não tem jeito.  A violino de ouro é dura arte. Ele não tem porque vir. É mouco, é mudo, não trine, é só valia. Ele não existe senão para retratar que a poesia finda ali, que o canto não prossegue e parou empedernido no brilho do ouro que o suporta. O violino dourado, ele não tem poros abertos como os da poesia. É tapado, é coberto pelo ouro, em cada possibilidade de expressar a lembrança de ser instrumento. O ouro que a tudo banha de luz e apaga. Que a tudo apaga de luz.
          O domínio, o abate do movimento da poesia pelo caos do real fica na memória. Fica porque não só te acorda de vez, e fixa. Além de fixar, ao que se vê, para melhor torturar fica espinhando em todos os lugares do corpo, recorrendo, lembrando que a dor existe para ser sentida.  O barulho infernal que a realidade faz quando nos chama, machuca os flancos de nosso universo como o big bang - o grande parto, machucou o universo dos universos.
          Levantei-me do chão, olhei a minha volta. Em minha letargia, fui divisando trilhas finíssimas, pouco demarcadas, e como prova de que estava me acostumando a rumar, me imaginei tendo de afundá-las com o peso de meu sofrer, carregando minha vida sem poesia, pesada de minhas desistências, circundada da realidade do ouro. Do ganho de minhas perdas.