quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Atravessia

                                                     

          Parecia um deserto. Era como se não houvesse vegetação, nem mesmo as rasteiras. Não fosse a sensação de ouvir água em movimento, encachoeirada, caindo por perto, sentiria o abandono do mundo. Acordei de um sonho intenso. Apunhalada, cortada e rôta. Os cortes, os furos, tudo me doía. Ali estirada, minhas roupas pingavam cansaço e dor, suor e sangue. O sol no céu me dizia meio-dia. A metade do dia ido, o meio do dia por ir. Olhei ao meu redor como cegueiam os perdidos. Senti a solidão dos deuses agigantados diante dos humanos.  Meu corpo guardava os tremores e os barulhos das últimas explosões, ainda. Olhava tão cegamente procurando e não conseguia encontrar o caminho tomado pelos olhos moles que acompanhavam os meus. Não entendia a separação do corpo que andou dentro de mim como uma sombra interna, ou meu segundo reflexo. Não me queria atenta ao silêncio da voz que nos últimos tempos havia sido minha audição favorita. O aveludado do pêssego ao meu ouvido havia emudecido. Mas os estrondos, aqueles estrondos da realidade, da vida que existe fora da poesia, tinham alcançado meu sonho.
          O real sangra o imaginário desde que o mundo é mundo. O real, ele vem desmanchando tudo, avalancha, derruba, invade, estraga. Quando num sonho, o seu mundo é acordado pela visão daquele violino de ouro da vida, aí não tem jeito.  A violino de ouro é dura arte. Ele não tem porque vir. É mouco, é mudo, não trine, é só valia. Ele não existe senão para retratar que a poesia finda ali, que o canto não prossegue e parou empedernido no brilho do ouro que o suporta. O violino dourado, ele não tem poros abertos como os da poesia. É tapado, é coberto pelo ouro, em cada possibilidade de expressar a lembrança de ser instrumento. O ouro que a tudo banha de luz e apaga. Que a tudo apaga de luz.
          O domínio, o abate do movimento da poesia pelo caos do real fica na memória. Fica porque não só te acorda de vez, e fixa. Além de fixar, ao que se vê, para melhor torturar fica espinhando em todos os lugares do corpo, recorrendo, lembrando que a dor existe para ser sentida.  O barulho infernal que a realidade faz quando nos chama, machuca os flancos de nosso universo como o big bang - o grande parto, machucou o universo dos universos.
          Levantei-me do chão, olhei a minha volta. Em minha letargia, fui divisando trilhas finíssimas, pouco demarcadas, e como prova de que estava me acostumando a rumar, me imaginei tendo de afundá-las com o peso de meu sofrer, carregando minha vida sem poesia, pesada de minhas desistências, circundada da realidade do ouro. Do ganho de minhas perdas.





Um comentário:

  1. Sim... as desistências, ou melhor, nossas renúncias pesam toneladas e, por algum tempo, nossos remos são absorvidos pela escuridão dos oceanos... somos naus sem bússola, sem farol... enfim, navegar é preciso...

    ResponderExcluir