Havia passado a chuva, a trovoada, o temporal, mas o vento gelado ainda grudava na pele. Seus olhos vermelhos pareciam duas
poças grandes d’água em um colinho de açucena. Desequilibravam e balançavam o homem, como
a água da chuva faz com o copo dessa flor. Arrisquei uma tosse, não saiu. Olhei
para o lado e me vi atrelada ao destino que acabava de se inventar pra mim.
Estávamos no carro e tudo lá fora era molhado de tristeza, e eu pensava no
quanto tudo ali dentro era seco da alegria que um dia sentimos juntos.
Olhei
o caminho longo que agora se formava da janela. Rumos estranhos, mal traçados.
Todos os galhos das árvores lembravam sobras de trilhas que não tinham um
começo visível e nem se podia ver seus fins porque as folhas impediam. Incerto
futuro, pensei. Recorro sempre às chaves em minhas inseguranças, lembram-me saídas e chegadas. Segurei-as entre meus dedos tensos, com certa frouxidão. Precisava
da certeza da ida e o barulho das chaves provocava isso em mim. Aquele tinguelingue quando
elas esbarram umas nas outras, arranham minhas horas. Sempre foi assim,
percebo meu tempo nas chaves, pelo balanço delas vejo se ele está vencido ou se começa a ser contado.
Dizer o que, quando as chaves já me
diziam tudo e quando o momento roía-me os calcanhares? O meu ir, gritava dentro e só eu sabia o quanto gritava alto, quase que dava para se ouvir de
fora. Olhar o longe era a arma contra ver do canto dos olhos doces, desaguar o tudo
represado e ainda dificultar a descida da minha montanha. Ah, a montanha... Uma
descida sonhada, bem-vinda, que pensava eu, seria uma disparada como um esqui deslizando
na neve, um escorregador sem fim, uma bicicleta sem freios, um mundo sem
atalhos, sem curvas. Meu coração moleque de rua iria descruzar os braços, destravar as pernas, pisar macio os pés sujos e correr esvoaçando com o vento os cabelos suados, rumo ao novo caminho. Ele queria experimentar a
vida irresponsável de sair na correria, sem alma, sem calma, desarmado, desimpedido,
descompassado, desatrelado, despedido, e todos os “des” mais existentes. Ir, ir
e ir. Deixar para trás os idos, os tidos, os vividos, os investidos, os lidos e
buscar os “rá” que se formariam a partir dali. Abri os braços e a vida foi me invandindo, me inflando e se acomodando em mim. Pus uma venda nos meus olhos de enxergar o passado e abri uma fenda no futuro.