Um dia dois escorpiões se encontraram. Apesar de serem de diferentes espécies, eram escorpiões. A literatura especializada traz cerca de mil e quatrocentos tipos diferentes deles. De cara, os dois se viram e entenderam suas primeiras desigualdades , mas se sentiram atraídos pelas suas semelhanças e claro, pelas suas diferenças sexuais de macho e fêmea. Os escorpiões se perceberam muito parecidos e se impressionaram ao se sentirem. Tão marcante é a visão para os escorpiões, que possuem até seis pares de olhos e não enxergam bem. Há quem diga que eles captam imagens num tom azul-esverdeado e com seus corpos captem luz invisível aos olhos, de jeito a enxergarem com o corpo todo. Foi nessa fixação de olhos meio cegos, de sentirem-se vistos despidos um pelo outro, de se abarcarem tanto, que surgiu dali uma nova cor e uma nova forma de olhar de escorpiões. Uma única, para os dois. As diferenças não existiam mais. Os dois seguiam se confluindo e cada vez mais se avolumando e se condensando, como quando se misturam dois grandes rios.
Dentre os mistérios do escorpião, há o que trata de sua fluorescência. Escorpiões brilham quando a luz incide sobre eles. Ali, bastou o olhar de um no outro e se fizeram iluminados. Escorpiões se envaidecem de suas plasticidades, apesar de terem um aspecto rijo, sem maleabilidade e o corpo fragmentado... A olhar assim, cada escorpião parece feito de um mosaico, parece montado aos pouquinhos, o que dá ao escorpião um certo ar de completude. De que não lhes faltam peças. Talvez por isso, os escorpiões se empoderem, como se se bastassem.
Os dois escorpiões que se encontraram são como poetas, são "sentidores". Escorpiões não precisam de festa. Eles são a própria festa. Sensíveis, seu acasalamento é doce e requintado. Apesar de emanarem sexualidade, se pode ver a infinita paciência em sua conquista marcada pelo ritual da dança chamada "Promenade a deux" (passeio a dois), onde não têm pressa. Algumas dessas danças duram de quinze a vinte minutos, como há também espécies que ficam dançando até por dez horas seguidas, como é o caso destes dois escorpiões aqui. Que dançaram e dançaram... danças singulares e inesquecíveis. Nesta espécie de escorpião, o macho não possui um orgão transmissor de esperma, ele então delicadamente limpa o chão, num cuidado com a parceira, depositando ali o espermatóforo, a estrutura que contém seus espermatozóides, para que ela sensualmente na dança, arrastada por ele, passe o ventre e seu orgão receptor no espermatóforo, para receber a doação de parte do que é o seu parceiro. Assim seguiam dançando a vida.
Tudo lindo, tudo fluindo. Mas a essência do escorpião é inegável, o que o deixa mais misterioso e intrigante. A sua peçonha o espanta da felicidade. Aquilo que brilhava tanto nos olhos dela, aquilo que ele via fogueando em sua fêmea, a felicidade dela estampada, lembrou o fogo que o irrita, que o fadiga. A luz que ele sente forte e enxerga com profundidade o frustra e amedronta, clareia-o imensamente e foge ao seu poderoso controle. Ele se vê encurralado, acuado, suprido do amor do fogo emanado dela, de seu olhar, daquele calor aterrorizante a ele... e ele se vai. Ele morre ensimesmado. Ela o deixa ir.
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